ARTIGO: A DISCUSSÃO DA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA NO MEIO RURAL ATRAVÉS DO DISCURSO DO PCB MANIFESTADO NO JORNAL “TERRA LIVRE” - escrito pela professora Mestre Sandra Maria Castanho

A DISCUSSÃO DA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA NO MEIO RURAL ATRAVÉS DO DISCURSO DO PCB MANIFESTADO NO JORNAL “TERRA LIVRE”

A primeira edição do jornal Terra Livre foi publicada no dia 5 de maio de 1949. Considerado o primeiro jornal brasileiro a se dedicar ao cotidiano dos trabalhadores rurais, informava sobre direitos sociais, trabalhistas, organização sindical, além de vários temas ligados ao homem do campo. O jornal, de periodicidade quinzenal, foi editado até 1964, quando o golpe militar proibiu as suas atividades,
inviabilizando a sua continuidade. No início o jornal estava sob a responsabilidade editorial do Partido Comunista Brasileiro, sendo que a partir de 1954, quando da fundação da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), o jornal passou a ser editado sob a sua responsabilidade.
Segundo Medeiros, o periódico foi o principal instrumento escrito de propaganda das bandeiras do PCB entre os trabalhadores do campo e de apoio às lutas pela prática da legislação trabalhista rural no Brasil. “É através da imprensa comunista, e das atividades que ela supunha, que a noção de direitos começou a ser socializado entre os trabalhadores, bem como a busca de reconhecimento social de algumas práticas costumeiras como direitos”[3] (1998, p.53).
O Terra Livre dedicava-se à divulgação dos direitos já concedidos por lei, combatendo as injustiças e denunciando os camponeses explorados. Essa postura gerava inquietação na elite agrária, motivando perseguições policiais no campo e invasões nas casas de trabalhadores das fazendas de café e das usinas de açúcar. No entanto, essa repressão social não impediu o jornal de circular. Muitas vezes sua distribuição era realizada na clandestinidade, obedecendo as estratégias sigilosas e uma lógica própria de funcionamento: “não tinha redação fixa e sua remessa era feita cada vez de um lugar diferente, e por meio também diferente. Enrolado com os impressos costurados em algodãozinho como qualquer objeto enviado uma hora pelo correio, outra hora por trem assim o jornal foi firmando e crescendo” [4].
O Terra Livre era constituído de diversas seções. Cada coluna se dedicava a um tema específico, com assuntos que permeavam o campo da política, economia, cultura, entre outras atividades.
Cartas da Roça era o espaço dedicado aos lavradores dos diversos pontos do país para se manifestar sobre os assuntos que mais o preocupavam. Geralmente esse espaço era usado para denunciar abusos e os diversos tipos de exploração sofridos no ambiente de trabalho.
Outra seção importante era o Almanaque Camponês. Dedicado aos assuntos ligados à produção agrícola, tinha como objetivo informar ao homem do campo sobre as diversas oportunidades relativas à cadeia produtiva. Mas esta seção se dedicava também a outras generalidades que serviam de entretenimento ao agricultor, como por exemplo a culinária ou até mesmo piadas. As piadas tinham como objetivo divertir os seus leitores, ridicularizando ironicamente os proprietários de terra e, ao mesmo tempo, informando sobre a exploração da “elite agrária”.
Poetas do Sertão foi o nome escolhido para uma coluna dedicada aos versos e às poesias. Através dessa seção, o jornal valorizava os temas culturais dedicado ao seu público. Era comum a promoção de concursos para incentivar a criatividade dos escritores, que além de buscar a satisfação pessoal, podiam publicar seus versos e poesias, além de concorrer a diversos prêmios. Os versos e as poesias publicados geralmente eram encarregados de transmitir determinados valores da sociedade, ou críticas sociais, mostrando o contraste da riqueza do Brasil, concentrada nas mãos de poucos privilegiados, enquanto a maioria da população era pobre.
O jornal também servia como instrumento de divulgação dos direitos trabalhistas. Desde 1956, a coluna de maior popularidade era Conheça seus Direitos. Por um longo período foi assinada por Lyndolpho Silva (presidente da ULTAB) e procurava discutir, com base na legislação existente, diga-se, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), os direitos que os trabalhadores tinham, mas que lhes eram negados, tais como: férias, repouso semanal remunerado, direito à habitação, salário mínimo sem distinção de sexo, limitações na cobrança das taxas de arrendamento, entre outros.
Através dessa breve análise sobre as partes do jornal, pode-se observar que ele tinha como objetivo defender os interesses dos trabalhadores rurais explorados pelos latifundiários, transformando-se em um órgão de luta, organização e orientação no desenvolvimento do movimento camponês e principalmente na formação sindical e na luta pela legislação trabalhista.
No período em que foi publicado o jornal Terra Livre (1949 – 1964)[5], o Brasil foi marcado pela efervescente organização dos trabalhadores rurais. Nesses anos, alguns movimentos sociais revelaram a insatisfação e a miserabilidade em que viviam os trabalhadores do campo. Movimentos como a "Revolta do Sudoeste" no Paraná em 1957, conhecida resistência de colonos e pequenos proprietários contra a violência do Estado e dos jagunços da empresa de colonização CITLA[6]; "Trombas e Formoso"[7]; organização das "Ligas Camponesas", no Nordeste[8]  e a proliferação dos "Sindicatos de Trabalhadores Rurais", a partir de 1956 no sul do Brasil, contribuíram para a formação da identidade dos trabalhadores rurais enquanto "classe social" [9].
Acrescenta-se a esses movimentos, a fundação da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB) em 1954, com a finalidade de unir e organizar os trabalhadores rurais. Sob presidência de Geraldo Tibúrcio, essa organização representava a face legal do PCB para as questões que envolviam o campo [10].
As pesquisas no campo da história e das ciências sociais sobre os movimentos sociais rurais, no período mencionado, revelam a constante luta pela terra, apresentando formas diferenciadas, que nos permitem incursionar por caminhos bastantes profícuos da análise histórica: movimentos messiânicos, movimentos armados com traços de guerrilha, movimentos sindicais e o movimento dos trabalhadores rurais sem terra presente até s dias atuais.
Outro tema em destaque neste contexto é a luta pela conquista de uma legislação social. É quase consenso a historiografia brasileira dizer que o Estado excluiu os trabalhadores rurais dos benefícios e, também do controle, advindos da lei [11].
No Brasil, historicamente, a legislação social trabalhista manifestou-se primeiramente no operariado urbano e, só depois de muita luta chegou aos assalariados rurais, camponeses e demais categorias de trabalhadores do campo [12]. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), editada em 1943, excluía os trabalhadores rurais dos benefícios sociais da legislação.
O debate sobre a legislação rural só tomou corpo a partir da década de 50, motivado pela atuação de Getúlio Vargas, em seu último mandato, visando estender a legislação social aos homens do campo e pelos movimentos de camponeses que eclodiram nessa década em todo o país [13].
Esse debate ampliou-se a partir da apresentação no Congresso Nacional do projeto de lei que visava criar um Estatuto para o trabalhador rural, realizado pelo então deputado pelo Estado do Rio Grande do Sul, Fernando Ferrari, em 06 de maio de 1960. Os principais pontos do projeto visavam garantir os direitos dos trabalhadores que eram desrespeitados pelos proprietários rurais e a regularização da sindicalização rural [14].
Esse projeto lei foi aprovado em 2 de março de 1963, com a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural - ETR (Lei n. 4.214). No entanto o estatuto recebeu críticas por parte das classes dominantes rurais, no que se referia principalmente à estabilidade de emprego e à sindicalização rural, uma vez que direitos como salário mínimo e férias, mesmo desrespeitados pelos proprietários rurais, eram garantidos pela CLT.
Com relação à estabilidade do emprego, o discurso ruralista enfatizava as possíveis incompreensões sociais que dificultaria o relacionamento harmonioso entre trabalhadores e patrões. Os trabalhadores rurais, segundo os ruralistas, estavam acostumados a mudar de emprego, fascinados pela aventura do nomadismo, escolhendo por receber a indenização pela estabilidade [15].
A preocupação das classes dominantes rurais em relação à sindicalização se devia ao fato de que para eles, essas entidades poderiam perturbar a paz social reinante no campo, enveredando-se por um caminho de modificações da estrutura econômica, social e jurídica da sociedade, já que seriam passíveis da influência de “agitadores profissionais” ou seja, os militantes das Ligas Camponesas e do PCB [16].
O jornal Terra Livre procurava divulgar a importância da formação sindical.  Desde o ano de 1955 o periódico vinha enfatizando que: “o sindicato é a forma de organização dos trabalhadores que vivem de salários e ordenados. São trabalhadores que se associam para a defesa se seus direitos e a conquistas de suas reivindicações, organizados no sindicato dos trabalhadores adquirem uma força invencível” [17].
No ano de 1963, durante o governo João Goulart, aconteceu a regulamentação dos sindicatos dos trabalhadores rurais. Neste mesmo ano foi fundada a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), continuando o trabalho de formação e reconhecimento dos sindicatos. Por outro lado, o ETR significou um maior controle nas relações de trabalho no campo.
Nas décadas de 1950 e 1960, o Brasil teve a maior parte de suas terras concentradas nas mãos de uma minoria latifundiária, enquanto à maioria dos trabalhadores rurais eram explorados. Neste período, as notícias publicadas no Jornal Terra Livre contribuíram para a organização dos camponeses através da representação sindical, do estímulo do debate sobre a Reforma Agrária como mecanismo do desenvolvimento nacional e a da proposta de extensão da legislação social ao homem do campo.


 [3] MEDEIROS, L. S. Política e Reforma Agrária. In: COSTA, L. F. C.; SANTOS, R. (org.). Política e Reforma Agrária. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p. 53. Ver também da mesma autora: Lavradores, trabalhadores agrícolas, camponeses: os comunistas e a constituição de classes no campo. Campinas.1995. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – IFCH. Universidade Estadual de Campinas.
[4]  Terra Livre, maio. 1963.
[5] Infelizmente as edições disponíveis para a pesquisa e arquivadas na Biblioteca Nacional são apenas do período 1954-1964. Uma cópia microfilmada do jornal encontra-se no Lappom/UEM.
[6] REGO, R. M. L. Tensões sociais na frente de expansão: a luta pela terra no Sudoeste do Paraná. In: SANTOS, J. V. T. (org). Revoluções camponesas na América Latina. São Paulo/Campinas: Icone/Edunicamp, 1985. Ver também: COLNAGHI, M. C. Colonos e poder. A luta pela terra no Sudoeste do Paraná. Curitiba. 1984. Tese (Mestrado em História) – Universidade Federal do Paraná.
[7] CUNHA, P.R.R. Aconteceu longe demais. A luta pela terra dos posseiros de Formoso e Trombas e a política revolucionária do PCB no período 1950-1964. São Paulo. 1994. Tese (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifica Universidade Católica.
[8] LEMOS, F. A. Nordeste: O Vietnã que não houve – ligas camponeses e o golpe de 64. Londrina: ed. UEL, 1996; e também: MORAIS, C. S. História das Ligas Camponesas no Brasil. Brasília: Iattermund, 1997.
[9] PRIORI, A.A. Legislação social trabalhista: a exclusão do trabalhador rural. História.v.15, p.287-302, 1996.
[10] COSTA, L. F. C. Sindicalismo rural brasileiro, em construção. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996.
[11]  Sobre essa discussão, ver: PRIORI, A. O protesto do trabalho. História das lutas sociais dos trabalhadores rurais do Paraná (1954-1964). Maringá: Eduem, 1996; SIGAUD, L. Os clandestinos e os direitos. São Paulo: Duas cidades, 1979; O’DWYER, E. C. Da proletarização renovada à reinvenção do campesinato. Rio de Janeiro. 1988. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – PPGAS. Museu Nacional.
[12] GOMES, A.M.C. Burguesia e trabalho: política e legislação social no Brasil (1917-1937). Rio de Janeiro: Câmpus, 1979.
[13]  Ver PRIORI, Op. Cit. 1996.
[14] PRADO JR, C. A questão agrária. 3º ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.
[15]  Ver os estudos de PRIORI, Op. Cit. 1996.
[16]  Ver PRIORI, Op.cit. 1996; e SILVA, Op.cit. 1993.
[17]  Terra Livre, ano 1955, n. 57.

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